Legítimo baiano que cresceu à beira do Velho Chico, Guto Carvalhoneto é um rodamoinho de emoções, arte, sertão e cidade traduzido em roupa. Professor de antimoda da Escolas de Artes Visuais do Parque Lage, no varejo há 13 anos, amigo de infância de Wagner Moura, Guto já é conhecido por suas peças geométricas moldadas numa finíssima costura em moletom, vendidas na Dona Coisa. Seu primeiro desfile comemora cinco anos de marca contando uma história através da camisa branca. Título da coleção: Primeiro grito.


"Imagina que eu passei cinco anos numa barriga, desenhando, rasgando tecido, criando tecido, cheirando tecido, cortando. E depois de cinco anos, tem essa coisa de primeiro grito. Ei prepara pra sair! Chamei de Primeiro Grito", diz Guto em seu ateliê num prédio de época em Botafogo.

Para Guto, o desfile é a ópera do estilista. Justamente por isso, vem se preparando para esse momento há algum tempo. "Enquanto eu não estivesse preparado financeiramente, com estrutura para apresentar essa ópera, pra mim não fazia sentido", afirma Guto, que sonhava com várias locações, entre elas, o Parque Lage, a Casa França Brasil e o pátio da extinta Casa Daros.

O DESFILE



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"Enquanto estava impossibilitado financeiramente de concretizar o desfile, fui rabiscando, construindo um playlist que me tirasse da minha zona de conforto para esse lado do Primeiro Grito. O caminho mais fácil da moda nunca me atraiu. É muito banal colocar um produto novo e em três meses ver isso perder o valor. Para mim era uma grande falta de respeito. Com o desfile coloco pra fora um pouco dessa clausura. Não saio de casa, não vejo revista de moda, sou super interessado em campanhas, passeio muito em revistas gringas virtuais", diz o estilista, que inspira também essa coleção no trabalho da fotógrafa e jornalista Genevieve Naylor, apresentado no livro "Uma fotógrafa norte-americana no Brasil".

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Genevieve documentou o guarda-roupa feminino dos anos 40 num Rio de Janeiro de saias midi em modelagem ampla. "Quando comecei minha marca, passei a buscar informações que trouxessem o novo, como a obra de grandes artistas e fotógrafos. Entre eles, August Sander e Seydou Keita. Seydou retratou a sociedade Mali na década de 50 com trabalhos incríveis", lembra Guto, que tem uma linha de básicos chamada + (mais), onde a peça-desejo é a maxi t-shirt masculina inspirada nos djelabas africanos.

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Na passarela em forma de octógono, desenhada por Gringo Cardia, Guto coloca em cena o sertão que viveu, cheio de histórias. Entre elas, a da cidade de Rodelas, onde morou dos 4 aos 14 anos, que foi inundada para construir uma barragem em 1988. "O Wagner Moura falou dessa inundação na exposição que o Ronaldo Fraga fez sobre o Rio São Francisco. Eu estou nessa exposição num video pequeno dançando forró", revela Guto, dizendo: "meu desfile é quase uma esquizofrenia criativa como eu".

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Na trilha sonora, Guto contou com a parceria de Dudu Prudente, baterista da banda Groovie onde cantava há muitos anos em Sergipe. "Grande produtor musical em Aracaju, ele faz um som regional longe de estereótipos. Dudu é responsável pelos últimos registros musicais da música sergipana e está sendo indicado para prêmio da música brasileira de melhor produção regional. Ele tem um projeto chamado Anavantou! com uma galera da Bélgica".

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O sertão do Velho Chico, onde Guto cresceu, surge na forma de apresentar a coleção de um jeito especial. "Cresci tomando banho e bebendo agua no Velho Chico, engolindo piaba do Velho Chico pra aprender a nadar. Fui buscar um sertão que vivi na década de 80. Antes da era do celular. Lugares onde a tecnologia está lá mas entrando no mato a gente descobre uma outra época", explica Guto Carvalhoneto, que fez o curta metragem da abertura da apresentação.

"Esse curta não tem a ver com moda mas tem. Filmei no sertão de Sergipe. Fui para um lugar que é poesia pura. Levei um maquiador, Miguel Estelrich, um argentino que mora no Brasil, responsável pela última campanha internacional da Wella. Miguel usa a argila como recurso base de referência à aridez do agreste brasileiro", revela Guto, que escolheu a cantora lírica mineira Carol Renault para abrir o desfile. Carol nasceu com Alopécia, uma doença que faz cair todos os pelos do corpo e virou musa do estilista. "Ela está no meu site, na coleção 04", diz.

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"É uma ópera diante da camisa branca", explica. "A ideia é que as pessoas entrem na sala do desfile e já comecem a perceber. Queria ter uma câmera pra mostrar a cara da galera entrando. Fiz quatro campanhas numeradas. Essa, Primeiro grito, vai ser a 05. É quase que uma por ano. Meu timing é mais baiano", brinca Guto.

See now buy now, ele faz desde que montou a marca. "Minha colaboração com o Rio Moda Rio é didática. Sempre quis mostrar para as pessoas que tem um caminho muito bonito e interessante que ajuda o profissional a encontrar a marca dele. Se você quer mostrar algo novo, tem que olhar para dentro. Pesquise muito, leia muito, estude muito". 

Para ele, "falta hoje mergulho, profundidade, pegar o material e experienciar, errar. Hoje na maioria das marcas, a equipe de estilo viaja, entra nos provadores e fotografa. As que são mais baratas são compradas. Isso funciona? Funciona, é muito importante para o varejo mas não vale colocar na passarela uma coisa dessas", alerta.

Uma Surubabel com personagens de Amarcord

O cinema é fundamental para o trabalho de Guto. Surubabel, uma das coleções, baseou-se no livro "Pinturas e Platibandas", de Anna Mariani. "O video que fizemos era quase o Amarcord do Fellini. Os personagens, de Rodelas, correspondiam aos de Amarcord. As casas que ficaram submersas em Rodelas eram iguais às casas mostradas por Anna Mariani em sua obra", lembra.

Uma das grandes invenções de Guto é a maxi t-shirt. "É a minha havaiana", brinca. "Comecei a fazer essa pesquisa e vi que existiam peças amplas no estilo não gênero mas nunca na malha de t-shirt básica. Existiam camisões, djelabas, dessa galera com referência da roupa do Oriente, africanos, marrocos e tal. Pensei, caramba! Tenho que fazer isso", recorda Guto, que lançou a novidade há dois anos.

No final de 2014, ele confeccionou 25 peças e presenteou os amigos como o artista plástico Antonio Bokel e uma galera de músicos dod Silvio Fraga Quinteto. O look pegou e para sua surpresa, quando convidou o pessoal do Quinteto para fazer um som num de seus lançamentos, abriu a porta e estavam todos de maxi t-shirt. "Eu comecei usando com calça. Hoje quando quando saio com a minha t-shirt comprida coloco um tênis, chinelo e cueca. É uma liberdade absurda! Agora eu consigo entender a liberdade que vocês têm quando usam vestido!"

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Capricorniano inquieto, nascido em Paulo Afonso, onde morou até os 4 anos, Guto foi para Rodelas, onde viveu até 14 anos. Depois foi para Aracaju, de onde ganhou o mundo. Foi para Blumenau mas acabou se apaixonando pelo Rio quando veio visitar o amigo de infância Wagner Moura em 2004. Foi gerente da Tufi Duek na Praça Nossa Senhora da Paz e conta que aprendeu muito com Tufi. Viveu em Paris, onde trabalhou com o brasileiro Fernando Nunes, responsável pelo décor da Longchamp. 

"Tufi, pra mim, foi escola como empreendedor, foi escola como cuidar da marca. O que me fez ficar no varejo nunca foi a venda. Nunca fui melhor vendedor. Sempre fui o vendedor, o gerente que sempre fidelizou os clientes. Na Tufi Duek eu tinha aqueles clientes que, mesmo sem comprar horrores, o Tufi adoraria entrar na loja e ver. O que me atraia era o sensorial, a arte, o visual merchandising, um video de uma campanha", explica. 

O segredo da modelagem
 
Foi um tubo de linho e veludo usado por Sandra, mulher de Wagner Moura na cerimônia de uma entrega de prêmio, que chamou a atenção para o seu talento. O joalheiro André Lasmar apresentou Guto a Roberta Damasceno, da Dona Coisa, e ela comprou quase toda a coleção.

O segredo da sua modelagem: "faço a roupa cortando no plano, na mesa. Minhas roupas são muito geométricas. Trabalho com o tecido plano e com shape fora do corpo na maioria das vezes. E nesse shape eu encontro o corpo na cintura. Essa herança quente da gente, da brasilidade, eu vou ali na cintura. Mesmo a roupa sendo ampla, eu faço uma pence na frente e nas costas pra mostrar que aquela mulher tem cintura. Não é o solto reto. Adoro a roupa em formato de coluna. Mas a minha coluna tem uma quebradinha no meio. Tem um jogo de cintura".

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