Ilhas, continentes, um pas-de-deux de pétalas que parecem envoltas em leves tules de balé, planetas orgânicos feitos de formas encontradas na natureza. Ao longo de quase seis anos a atriz, artista plástica e cenógrafa Analu Prestes constrói delicadas montagens com sementes, flores e frutinhas encontradas em seu caminho pelo Jardim Botânico e fotografa em fundo de veludo preto. Vinte e dois quadros estarão na exposição "Jardim Secreto" a partir de 24 de outubro na Casa 32 num casarão do Largo do Boticário.


Quando se mudou para o Horto, durante três anos, Analu atravessava a rua e entrava no Jardim Botânico. “Chuva, sol, de manhã, de tarde, todas as estações, eu ia lá buscar a poesia do jardim em pequenas coisas”, conta a atriz e artista plástica, que começou assim o projeto de fazer um livro e uma exposição

“Tenho mais de 40 mil registros fotográficos. Conheço cada metro quadrado desse jardim”, afirma Analu, que já trabalha há cinco anos nas imagens. Tudo começou quando, fazendo dobraduras, encontrou um mapa mundi. “Fiz um barquinho de papel, onde escrevi “World” e passei a viajar com ele pelo Jardim Botânico, fotografando-o com a minha máquina”.

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A viagem mágica do pequeno barco acabou numa exposição em Londres. Até que uma amiga, Sandra, mulher do Wagner Moura, que documentava a peça “As meninas”, de Maitê Proença, onde Analu atuava, comentou: “adorei, mas atrás do barco é impressionante!’.

Começou então o mergulho poético de Analu, que no facebook faz um diário virtual do seu jardim secreto postando todo dia uma imagem com um título. Há dois anos no Prêmio da Música Brasileira, José Maurício Machline pediu ao Gringo Cardia para fazer o cenário com as flores de Analu Projetadas numa tela de LED no Theatro Municipal. “Para cada cantor ele selecionou 15 fotos, foi a coisa mais linda do mundo”, lembra Analu, que tem uma seleção para expor as imagens em enormes projeções.

Aonde mora a poesia 1

Quem entra no atelier de Analu Prestes é recebido por um arlequim feito por um ceramista italiano, herança de família, uma família nada convencional para os padrões dos anos 60. O pai de Analu, Agenor Sales, era corretor de imóveis e trabalhou com Juscelino Kubitschek na época da construção de Brasília. Ele comprou o arlequim para colocar no fundo de uma piscina azul "naquela forma bem anos 50 arredondada", lembra Analu, que adorava mergulhar para falar com o palhaço. "Tem a ver com o teatro e a minha história", diz.

Infância de cadillac turquesa nos carnavais do Rio

"Tive uma infância bem livre", conta. "Meu pai era liberal, carnavalesco, e minha mãe costurava e bordava as fantasias. Meu pai, que adorava carro, tinha um cadillac turquesa.  E a gente vinha com o cadillac para o Copacabana Palace trazendo todas as fantasias. Eles iam em todos os carnavais, saiam em todos os jornais. Minha mãe, Lucia, era linda, parecia uma vedete. Tem fotos incríveis dela com os pernões de fora".

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Com as folhas do diário e do caderno de bordados da mãe Analu fez uma de suas obras mais bonitas: "Memórias de vestir", vestidos de papel, onde as flores, os decalques e as páginas, ilustradas por versos da artista, nunca serão esquecidos. Até 20 de outubro, eles estão expostos no Insólito Hotel, em Búzios.

Erotismo e arte no banheiro

Analu teve liberdade para descobrir suas vocações. "Pedi para ficar estudando arte na FAAP durante um ano e meus pais acharam isso bem normal. Entrei num curso dado pelo Naum Alves de Souza, e logo no primeiro dia, quando ele perguntou quem gostaria de fazer teatro também, fui a primeira a me candidatar", conta Analu, que no curso foi iniciada na arte dos musicais, aprendendo não só a interpretar mas a fazer cenografia.

Múltipla, artista, atriz, cenógrafa, ela surpreende sempre. No Shopping da Gávea, quando ainda existia a Galeria de Arte Erótica, fez cinco boxes de banheiro em cerâmica. " Havia "O mastubador", um cara transando com uma menina, dois caras transando, duas meninas transando e uma menina cheirando cocaína. Reproduzi frases de um livro sobre literatura de banheiro no Brasil. Ah, tinha também uma esquina com travestis com bunda de fora", lembra.

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Os anos de repressão política fizeram Analu amadurecer mais rápido, arrancando-a de repente do mundo dos musicais. Ela nunca esqueceu a última aula no atelier do aquarelista José Salles, quando a tranquilidade do jardim nos fundos da casa, onde costumavam se reunir, foi interrompida brutalmente por agentes do Dops com metralhadora levando um rapaz todo machucado.

Do mundo dos musicais para o da repressão do DOPS

"Havia denúncias de que ali seria um ponto de encontro do Marighella. Nosso professor sabia mas nós não. Fomos todos levados para o DOPS, onde ouvíamos as pessoas sendo torturadas. Eu fui interrogada pelo Sergio Fleury. Comecei a fumar naquele dia. Nunca tinha fumado. De nervoso. Eu vivia fora da realidade, no mundo da Faap, no mundo da arte, fazendo teatro com o Naum, não tinha a menor noção do que estava acontecendo", lembra.

'Não conheço esse Marighella'

Sem saber quem era Fleury, Analu dizia: "Meu pai é uma fera, eu tenho hora para chegar em casa. Se eu não chegar até as 10 e 20 da noite o senhor não sabe o que pode acontecer. Parecia uma doida e falava sem parar: 'não sei do que o senhor está falando. Não conheço esse Marighella, eu faço teatro na Faap, fazemos musicais com o Naum Alves de Souza, fui falando tudo. Fiquei lá das 3h da tarde até umas 11 e meia da noite. O Zé viu que teria que falar para evitar que ficássemos presos. Éramos adolescentes. Dois dias depois pegaram o Marighella", conta.

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No Teatro Oficina, a experiência mais underground e louca

Depois da FAAP Analu foi para o Teatro Oficina, num dos momentos mais intensos do grupo, época de "Gracias, Señor". "Vivi a experiência mais underground e louca que podia acontecer", diz a atriz, que na ocasião tinha um jipe. Estimulado pelo Living Theater, de Julian Beck e Judith Malina, José Celso Martinez Corrêa transformou o Oficina numa comunidade. "Gracias, Señor" durava oito horas, dividida em dois dias de apresentação, com os atores provocando a plateia e deixando a crítica bem irritada.

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No porão do Oficina, surgiu o grupo Pão & Circo, liderado por Luís Antônio Martinez Corrêa, que conquistou o público apresentando "O casamento do pequeno burguês", de Bertold Brecht e Kurt Weill. Genial e irreverente, a peça foi parar no Festival de Teatro de Nancy, na França. Analu estava lá e uma parte da viagem foi bancada com uma exposição de seus desenhos. 

Com Buza Ferraz casamento e companhia de teatro

"Trabalhei um ano no teatro Oficina, nessa época minha mãe ficou doida. Droga pra caramba, uma gente louca. Vim para o Rio e meus pais alugaram um apartamentinho em Ipanema para mim. Minha vida engrenou no Rio. Foi quando conheci o Buza Ferraz. Ele tinha acabado de fazer 'O Rebu'. Eu estava ensaiando uma peça com o (Marcos) Nanini. Nós nos conhecemos num show famoso do Chico com a Maria Bethânia, no Canecão. Foi uma união muito forte, muito boa. Fundamos uma companhia, fizemos dois trabalhos bem bacanas 'Policarpo' e o 'Mistério Bufo', morei um ano fora do Brasil com ele. Foi a mais linda parceria da minha vida da vida amorosa", lembra.

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Luís Antonio Martinez Correa, parceiro de Analu, foi assassinado em 1987 na véspera do natal. "Eu estava fazendo 'Gardel'. Era para eu estar fazendo 'Theatro musical brazileiro' com o Luís. Eu já tinha feito cenário e figurino, estava estudando canto quando o Aderbal (Freire Filho) me seduziu de uma maneira tal que saí do musical e fui fazer o 'Gardel'. Estreamos no mesmo dia, eu com 'Gardel' e ele com 'O Theatro Musical Brazileiro'. A gente agora fala disso porque o tempo passou mas foi muito complicado", admite Analu, que adora o teatro embora tenha se distanciado um tempo.

No palco com Emily Dickinson e preparando 'Esperando Godot'

Hoje ela continua no palco com "Emily", um monólogo onde interpreta Emily Dickinson, que pretende apresentar também em São Paulo. "Estamos com um outro projeto agora 'Esperando Godot', eu e a Clarice Derzié. São dois clowns, duas mulheres, estamos animadas para fazer. Deve ser para o segundo semestre do ano que vem", conta Analu que faz também uma cabeleireira em "Tapas & beijos". Por sinal, por causa do personagem, acabou cedendo aos apelos das colegas, cortou e descoloriu o cabelo. "Andrea (Beltrão) e Fernanda (Montenegro) ficaram três meses no meu ouvido: 'Você tem que descolorir o cabelo!' Há um mês mudei".

No cinema fez uma participação em “Boletim de Ocorrência”, de Tomás Portella. "Faço a mãe da Cleo Pires. Agora vai entrar uma no ar uma webserie em oito episódios, com direção do Igor Angel, sobre o amor entre dois irmãos. Eu faço a tia desses dois irmãos, que começam uma relação incestuosa depois que os pais morrem. Os dois estão indo para uma festa de família em Perdões e a tia dá um flagrante neles tomando banho. A história mostra como essa tia vai lidar com isso. Ela está reunindo todos para comemorar o dia da família e estabelecer um dia para o reencontro familiar para que ninguém se perca", diz Analu, que também está em "Vendo ou alugo", da diretora Betse de Paula.

Na despedida, mais uma surpresa. Analu tira da estante vários diários em álbuns grandes, onde cada página é minuciosamente construída com cartões, tickets, fotos e até um cartão do registro de artista de Luiz Antonio Martinez Correa. "A vida toda já está toda aqui em álbuns. Uma amiga costuma dizer: se alguém quiser fazer sua biografia você já preparou tudo".

 Fotos de Ana Alexandrino e Divulgação

 

 



 

 

 

 

 

 

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