Buraco quente,  o nome já diz, era onde bombava o tráfico de drogas na Mangueira antes da UPP entrar. O tráfico não acabou mas numa casa, onde funcionava uma das bocas do comércio de drogas, hoje fica o projeto EcoModa, inaugurado dia 31 de outubro de 2012. Na rua, diante da fachada do EcoModa, cadeiras enfileiradas, a plateia aguarda o desfile da turma de estamparia, supervisionada pelo professor Pedro Lopes. "É moda brasileira que nasce na favela, nos morros, na periferia", afirma, empolgado, Almir França, coordenador criativo. "Não adianta vir para cá falar de estilista internacional", diz a professora Mary Santiago, que teve em sua primeira turma a velha guarda da Mangueira e viu uma aluna parar de beber durante o curso. Descubra aqui o lado transformador da moda.

 
Duzentos mil CDs piratas, recentemente apreendidos pela Receita Federal, vão virar coleção de roupas. Reciclagem é a palavra de ordem no projeto EcoModa, que recebe matéria-prima de marcas como Reserva e Isabela Capeto. O projeto abrange 12 comunidades e até agora formou 500 alunos em corte e costura, modelagem, desenho de moda, acessórios, estamparia e serigrafia. Segundo Almir, essa foi a forma encontrada pela Secretaria do Ambiente para fazer o dinheiro do fundo, obtido a partir das multas que aplica, voltar para a comunidade.

looks projeto ecomoda

"Quem faz moda no Brasil são essas pessoas. Nós, criadores, achamos que somos donos da moda mas não somos. Tudo fica lindo lá em Paris. Essa casa aqui foi a casa do tráfico. Vendia-se droga dentro dessa casa. Temos pelo menos três jovens que faziam parte desse grupo e hoje estão aqui com a gente", afirma Almir. 

Não adianta cesta básica com a marca errada de fubá

Tanto Almir como a professora Mary sabem muito bem que na Mangueira vive uma elite com hábitos de consumo e comportamento muito próprios e uma resistência aos projetos sociais e ao governo. "Não adianta chegar aqui com a cesta básica. O morador não aceita porque ela não tem o fubá que ele gosta. Não adianta vir para cá com patchwork se o povo não usa colcha de retalhos e não tem patchwork na passarela. Quando vim trabalhar aqui, meu objetivo não era discutir a questão social mas usar o projeto como ferramenta prática de moda", diz Almir.

 looks projeto ecomoda 2

Formada em moda pelo Instituto Zuzu Angel, Mary Santiago fez Ciências Sociais e agora se especializa em Direitos Humanos pela Universidade de Brasília. "Eu me formei em moda mas precisava da base teórica social porque moda por moda não me diz nada. Não adianta vir para cá falar de estilista internacional", diz Mary, professora de acessórios, que trabalha a coleção a partir da cultura local. 

'Minha primeira turma era composta pela velha guarda'

"Eu tenho que estudar o que é a Mangueira, mas dentro de um contexto histórico, porque isso aqui tem 100 anos. Minha primeira turma era composta pela velha guarda da Mangueira. Uma das alunas era a Guezinha, filha da Dona Neuma. Ela mora na casa da Dona Neuma, logo na entrada. Quando você chega no morro, vê a quadra, que é a sala de estar do morro. A gente tem o Centro Cultural Cartola, que é muito visitado por quem vem de fora e não por quem é daqui", diz Mary, para quem a mulher é decisiva na constituição da Mangueira. "Na verdade quando você vem andando, dá de cara com a casa da Zica e a casa da Neuma."
projeto buraco

A Mangueira é redonda

Qual é a forma da Mangueira? A pergunta da professora Mary provocou polêmica na turma. Um aluno respondeu: "é a do surdo, a marca da escola". "É o tamborim", disparou outro, mais jovem, porque embora a Mangueira seja a única escola que mantém só um surdo, as crianças aprendem tamborim e outros instrumentos. Entre as alunas tinha uma baiana, que imediatamente lembrou: "é a roda!." Conclusão: a forma da Mangueira é a redonda.

'Na verdade quem ensina Tom Jobim a tocar piano é Pixinguinha'

Mary conta que começou com os alunos uma viagem pela história do morro. "Essa escola foi fundada no Buraco Quente. Quem frequentava aqui? Pixinguinha vinha para cá. Na verdade quem ensina Tom Jobim a tocar piano é Pixinguinha. Paulo da Portela, que é da Portela, morou aqui antes. Qual o samba que Cartola fez em função dessa passagem do Paulo da Portela aqui? 'Aqui se abraça o inimigo como se fossem irmãos'. Estudamos Heitor dos Prazeres, artista plástico local e sambista", afirmou Mary, que no início causou estranhamento por não usar shortinho.

O lado socialista de Chanel

"A gente trabalha muito numa
linha de negociação", continua a professora, explicando que qualquer envolvimento com arte é visto como ligado à frescura de quem quer aparecer e ser outra coisa. "Na verdade quando eu trabalho dentro da temática que os representa aqui, faço tudo para que se sintam realmente inseridos nessa história. Não adianta falar de Saint Laurent, Chanel. Eu trabalho Chanel mas dentro do contexto social dela, porque tudo o que ela criou estava no contexto de uma guerra. Uma mulher socialista antes de se falar em moda", diz Mary.

projeto buraco 3

O desafio da professora Mary é transformar teoria em prática. "Trabalhei por exemplo o Bispo do Rosário pois identifiquei que tinha muito aluno com vínculo com o sistema penitenciário. Além do sistema penitenciário, havia também a questão delicada da doença mental. Com o Bispo do Rosário, você dá conta de associar a arte e sai do campo da
loucura. Os parentes de alguns alunos, por exemplo, trabalhavam dentro da Colônia Juliano Moreira", conta Mary, que teve uma aluna que parou de beber durante o curso.

Chuchu vira bolo de chocolate

Para a professora, é importante saber entrar nesse universo entendendo as diferenças. "
Você tem que compreender a diferença dos cheiros. É preciso entrar numa casa do morro para entender que não tem janela, que é só a porta de entrada, não entra luz nem vento. Essa pessoa que mora ali tem um cheiro diferente. Tem que entender quando
gesticulam muito, quando fala-se muito alto, porque na verdade a interação é direto com o vizinho."

Além da moda, outros projetos acontecem em diversas comunidades, como a Fábrica Verde, que recicla lixo eletrônico e oferece aulas de computação e audiovisual na Rocinha e no Alemão. Em comunidades como a da Chacrinha, do Salgueiro e do Turano, acontece o EcoBuffet, que trabalha com alimentos descartados por estarem fora do padrão do supermercado fazendo bolo de chocolate com massa de chucu e canapés com talo do espinafre. 

 Buraco Quente da Mangueira

 

 

 

 

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