Ney Matogrosso fala com o corpo. É das poucas pessoas hoje que dão entrevista sem as defesas de um script prévio, sem releases. Ele recebeu a equipe em sua cobertura no Leblon, onde conversamos cercados por pedras (ele ama a natureza), móveis antigos, observados de longe pelo olhar penetrante do próprio Ney numa pintura de Siron Franco e abençoados por uma escultura do Arcanjo Miguel.

A entrevista começa de pé sob os cliques da câmera de Jeff Segenreich. Sem fantasia, foi o pedido feito por Ney quando o stylist Jhon Santana perguntou que roupas gostaria de usar. Ele tira as espadrilles compradas numa viagem latinoamericana e fica descalço dentro da calça bem justa com camisa listrada.

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Devoções? "Não tenho devoções mas o Arcanjo São Miguel eu não dispenso", diz Ney, que pela primeira vez em 41 anos de carreira não emendou um projeto no outro. "Nunca tive uma folga entre um trabalho e outro mas não estou preocupado agora, quero decidir um repertório com calma. Talvez eu faça uma coisa com a Ana Carolina, uma peça, um texto com música do Carlos Gomes e poemas de Gonçalves Dias. É muito interessante porque fala do Brasil de uma maneira que não se vê ninguém falando, um nacionalismo poético", revela o artista, que ainda não terminou a turnê "Atento aos sinais", que ainda vai para a Argentina em maio, para Manaus e o Nordeste.ney-8 

Para Ney, a atual situação do Brasil é uma tristeza. "Uma lástima. Perdemos tudo que conseguimos. Tento no meu trabalho colocar sempre algum comentário mas jamais me envolveria com a política partidária. Não acredito que a música vá transformar nada. Eu, como cidadão, me manifesto, continuarei lutando pelo pensamento livre e independente, de falar com liberdade sobre todas as coisas. Venho exercitando essa liberdade há muito tempo. Como antes não me impediram tenho a ilusão de que não me impedirão agora nessa democracia."

O exercício de liberdade pessoal e artística começou cedo, em Brasília. "Eu tinha 16 anos quando meu pai me expulsou de casa. Falo essas coisas do meu pai porque tivemos depois um reencontro amoroso. Nós nos encontramos na rua e eu o beijei. Desde esse dia nunca mais a gente deixou de se beijar. Fui o único filho que o beijou. Quando ele me expulsou fui pra casa de um irmão dele e ele foi lá e disse para não me deixar ficar lá. Um amigo dele tinha um bar e disse: não vou deixar seu filho na rua. E me levou para a casa dele", lembra Ney, que voltou mais uma vez a pedido da mãe mas acabou saindo definitivamente.

"Uma vez até de revólver ele foi atrás de mim", lembra. "Não aceitei ficar de castigo e saí. Meu irmão veio me avisar: 'volta, porque ele está com um revólver e vem aí pra te dar um tiro!' Voltei mas isso foi na reta final quando a coisa degringolou mesmo. Mas eu gosto do resultado e da pessoa que eu virei. Eu odiava meu pai tão verdadeiramente que quando amei, amei verdadeiramente", conta Ney, que se alistou na Aeronáutica no Rio de Janeiro e depois passou a viver de artesanato em São Paulo.

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Alma e visual hippie, Ney Matogrosso conta que não queria conviver com a sociedade. "Achava a sociedade mentirosa, hipócrita e me afastei de tudo. Fui viver minha vida à margem por opção e não por necessidade. E aí você tem um preço. Como optei por viver das coisas que eu fazia tinha dias que eu não comia mas não tinha problema. Nunca me senti um coitadinho. Era eu vivendo a minha vida", conta Ney, que em Brasilia chegou a trabalhar no Hospital de Base.

 "Foi meu primeiro emprego em 1966 num laboratório de análises. Fui ser funcionário público. O Hospital de Base tinha sido inaugurado e precisava de mão-de-obra. Eu e meu primo fazíamos as lâminas de biópsia. No final eu olhava a lâmina e já sabia se era câncer ou não. Depois pedi para para trabalhar com crianças ou com loucos. O hospital me colocou com as crianças", lembra Ney, para quem a experiência foi inesquecível. ney-1

O departamento ficava no sétimo andar e tratava de crianças que acabavam sendo abandonadas no hospital ou morriam. "Era estranho", recorda. "Eu tinha 20 anos. Meu primeiro trabalho foi todo relacionado à morte. Pedi autorização para levar as crianças para um bosque de eucaliptos que havia atrás do hospital. Eu andava de quatro com elas montadas em mim e dava um dos meus colares a cada uma. Eu era um brinquedo delas. As pessoas 
olhavam para mim e diziam: isso não é emprego de homem. Olha que mentalidade idiota! Homem não pode 
exercitar afeto?!"  

Habilidoso com as mãos, Ney Matogrosso criou várias peças artesanais que acabaram sendo usadas por ele próprio nos shows. Nos cintos e adereços que fazia o Ney de Souza Pereira começou aos poucos a se transformar em Ney Matogrosso. "Todas as primeiras peças de 'Bandido', 'Homem de Neanderthal', Secos & Molhados foram feitas por mim. Trabalhava com dentes, sementes. Mas pra viver mesmo trabalhei com couro. Fazia cintos, bolsas, pulseiras, anéis com sobras de couro. Num dos meus shows no Canecão, a Nice, mulher do Roberto Carlos, apareceu com várias peças que ela tinha comprado", conta.

Ele lembra do primeiro dia em que se apresentou com o Secos & Molhados. Chegaram num palco mínimo, com espaço quase apenas para uma banda. "O que sobra para mim?", perguntei. "Esse metro quadrado aí é teu, me disseram. Eu então falei: vou fazer o que eu quiser, tá bem? Eu só não queria ser crooner. Queria me liberar mas não sabia para onde eu ia. Eles queriam que eu entrasse com uma boina de Che Guevara. Não vou botar boina de Che Guevara porque eu não tenho nada a ver com isso. Entrei com uma calça de cetim bem baixa, quase com o pentelho à vista, branca e em todo o lugar que tinha pelos colei penas brancas com cola de cílio. Fiquei uma ave de calça branca.Comecei a pirar nisso. Não era masculino ou feminino, essa não era a minha preocupação. Queria criar uma imagem que provocasse no inconsciente das pessoas o que elas bem entendessem", lembra.

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Ney chama atenção para a preocupação com os gestos que existia na época. "Até ali é de homem, dali para lá não é de homem mais. Nunca respeitei isso. E vamos lembrar que Elvis já existia e já tinha liberado os quadris dos homens. Só que eu liberei nu no Brasil", diz ele, que recebeu vários avisos e recados da censura. "Diziam que eu estava me excedendo, que eu prestasse atenção e avisaram que meu nome estava no Cenimar, o órgão de repressão mais perigoso daqueles tempos de repressão. Eles me consideravam uma ameaça pública mas não me importei. E aí, ia me submeter aquilo? A autoridade da minha vida era meu pai, que eu contestei muito cedo".

Com voz e imagem inconfundível, domínio de palco e conhecimento de luz (dirigiu o último show de Cazuza, e de amigos como Chico Buarque e Simone), Ney Matogrosso abriu seu próprio caminho. O poder da voz, por exemplo, se mostrou num show na Universidade de Brasíliam quando foi convidado a participar num festival de Música Popular Brasileira.

ney-2"Tive o azar de me apresentar depois de menininhas todas vestidas como Nara Leão. Quando abri a boca um camarada começou a me xingar por causa da voz. O que eu ia fazer. Era a que eu tinha. Não tinha outra. E fui escolhido para o Secos & Molhados por isso. Eles queriam um trio e não queriam uma mulher. Estavam atrás de um homem que tivesse voz aguda. Até então os homens tinham que cantar grave com vozeirão", conta Ney, que também soube escapar do estereótipo conquistando mais uma liberdade, a de brincar com a fantasia e o despojamento de acordo com o show.

"A passagem da fantasia para o despojamento foi quando eu fiz Pescador de Pérolas", diz. "Minha intenção era dar ênfase ao canto. Eu lia que eu ficava me requebrando seminu. Que era uma apelação. Então tá, vamos ver se sou cantor mesmo. Abri mão de tudo. Vesti um terno branco de linho e os músicos diziam ‘dança!’ e eu: não vou dançar! A ideia aqui não é essa, a ideia é ver se dou conta do recado. A crítica foi maravilhosa. Nessa época um público se afastou porque achou que eu tinha encaretado e outro se aproximou", conta Ney, que nunca teve nenhuma relação direta com a moda.

ney-3Aos 73 anos, sua leveza física e emocional é impressionante. Amigos? "Já tive muito mais amigos, metade foi na leva. Houve um tempo em que fiquei muito sozinho. Teve um momento, que para mim foi muito difícil. Os amigos são nossos espelhos, em quem você se vê. E aí eu não tinha mais reflexo no mundo para mim. Vivi um tempo muito fechado. Não queria, não tinha interesse. Acho que era luto e eu não sabia.Teve uma hora que eu me abri e apareceu um monte de gente nova e interessante", afirma Ney, que não faz dieta, come pouco e malha todo dia. "Hoje peso 61 quilos, e gosto de malhar com ferro para definir os músculos".

Com o passar do tempo, ele reconhece que a energia mudou. "Eu era movido pela sexualidade. Estava na minha testa, ela me guiava. Hoje ela ocupa um lugar bem próximo do primeiro mas não é a única meta da minha vida porque agora para realizar o sexo eu preciso de um pouco mais. Antigamente não precisava de nada. Era meio animal. Hoje se não tiver carinho não me satisfaz", revela.

 

 Fotos: Jeff Segenreich | Styling: Jhon Santana | Beleza: Hemanuelle Souza | Arte: July Morais

 Onde encontrar:

Calvin Klein: www.calvinklein.com.br | Colcci: www.colcci.com.br  | Enjoy: www.enjoy.com.br | Levi's: Shopping Rio Sul - |tel: 21 2541-1595 | Ricardo Almeida: www.ricardoalmeida.com.br | 

 

 

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